sábado, 24 de maio de 2014

CICATRIZES NÃO DOEM mas chateiam. "Se me mostrares um caminho, eu seguirei noutra direcção"


"Dia 143.
Recordo as tuas imagens. A tua lembrança é uma queimadura
que não dói. Já não dói. A música que fez rodar as nossas tar-
des está obscuramente calada, a flauta é infeliz, o diabo está
dentro dela.
Os nossos anjos estão agora num asilo, as suas asas estão mo-
lhadas de amargura, a truculenta carne da paixão perdeu o pra-
zo e o sabor.
Volto-me para dentro e vejo minúsculas matérias que não se
revelaram, não aconteceram, não chegaram a florir. Foste bri-
lhante, pura, azul como a aura de uma criança loira. Agora, os
teus dedos bailarinos são de metal, são frios, incapazes de co-
municar, de se exprimirem na linguagem que ajudou a derru-
bar todos os impérios: a ternura.
Não estou apavorado, só estou triste. E nem preciso que me
expliques as razões por que morremos, estando ainda vivos.
Como algumas estrelas que explodiram há muito, mas que con-
tinuamos a registar no mapa do céu.
Se me mostrares um caminho, eu seguirei noutra direcção."
*
in ANO COMUM, 2.ª Ed.
(Introd. de Robert Simon; Posf. de Teresa Sá Couto)
Editora Edições Esgotadas, 2013.

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